Mínimas (24-)

CCCXXII (CCLXV refeito)


Recolhi e organizei em ordem cronológica os trechos do diário de guerra de João Guimarães Rosa citados por Jaime Guinzburg em seu belíssimo ensaio "Notas sobre o Diário de Guerra de João Guimarães Rosa", publicado em Aletria: Revista de Estudos de Literatura, n.2, vol. 20, de maio-agosto de 2010 e disponível em: https://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/aletria/article/download/1533/1629.

(Os números entre parênteses após cada trecho referem-se à página do texto de Guinzburg onde se encontra.)


"18.12.1939

À noite, saí do Consulado: a mesma escuridão de sempre – Verdunkelung [queda de energia, blecaute, mas também toque do alarme]. Céu azulado, com estrelas. Cá em baixo, a treva, e uma névoa fantasmagórica dissolvida na treva. Luzes há, pequeninas errantes, rápidas, irreais, como vaga-lumes." (p.101)


"25.2.1940

Crepúsculo de cores estranhas, tintas espessas; acima das casas, o céu tinha uma barra mais escura, parecendo que as casas mandavam sombra para cima. Depois a massa negra- violeta-rosa, no céu. No Alster, alguns marrecos sobre o espelho, como nas lagoas falsas de certos presépios. Depois, acima, o céu azul, onde duas estrelas brilhavam, sozinhas. Havia exercícios de aviões, com holofotes." (p.101)


"2.III.1940 (sábado) – Hoje, ao sair da casa do C. Geral, às 10 e meia, vi os holofotes. Céu estrelado. Noite escura na terra e clara no céu. Dois holofotes imóveis – cones cruzados. E um terceiro, pendulando num ângulo invariável, corria, para lá e para cá, batendo meio céu e desrespeitando uma porção de constelações. Os aviões ingleses têm vindo a Berlim todos estes 4 dias.

(Um avião foi alvejado – ou colhido pelo refletor (holofote) justamente a dois milímetros da á do Centauro, entre a Ursa-Menor e o galho mais alto (a copa) do olmo de defronte minha casa - M%)" (p.101)


"17.V.1940 Fui, com Ara, a Harburg e à Repperbahn, para ver os estragos das bombas e da Flak [artilharia antiaérea].

As cerejeiras floridas – flores alvas, em toalhas e véus. E as velas brancas das castanheiras.

Vimos a caserna; o buraco da bomba, na praça. A árvore parcialmente descascada; etc., etc. Mas não vimos a (fábrica) de óleo. As casas destruídas. Os caminhões, com soldados, evacuando os moradores vizinhos." (p.99)


"30 de Maio de 1940. 12 horas e 20. Estou trabalhando, corrigindo o último trecho do "O burrinho pedrês". Mugiram as sirenes. Alarme!

10 minutos para 1 hora – (Três) Quatro estampidos surdos, subterrâneos. Bombas? Mais bombas, perto, sempre mais perto." (p.102)


"Noite de 17 para 18 de Junho [1940] – A 1 hora da madrugada – Alarma, ataque aéreo, bombas. Flak – às vezes como se o ar e o céu fossem lago imenso, onde um peixe grande desse pulos. Pulos de um peixe enorme, n'água mansa. Outras vezes, o espouco de uma garrafa a desarrolhar-se. Outras, como drapejos de pano pando, de bandeira ao vento." (p.102)


"(19.VI.1940) – Estou escrevendo na cama, ao som dos estampidos da Flak. Alguns são tétricos: como socos retumbantes, dados por punhos enormes no bojo elástico do ar alto. Outros ribombam festivos. Uns tocam bombo ou tambor. Antes-de-ontem estão dizendo que caiu uma bomba no Alster (...) Houve peixes mortos, galhos de árvores arrancados, vidraças partidas. Eu penso que foi da Flak."(p.102)


"5.VIII.1940 – Alarme a 0,10'! 8.VIII.1940 – Alarme às 11,45'! 10.VIII.1940 – Alarme às 12,55'!" (p99)


"12.IX.40 –

Ontem houve Grossangriff [grande ataque], às 11 da noite. Chuva de bombas. Fui, com Ara, ver as casas destruídas, na Sierichstrasse e Mühlenkampf. Em Harburg, foi feio, tendo sido atingido um Bunker." (p.99)


"7.X.1940– Dois alarmes; às 9,50 da noite e cerca de 12 e tanto (meia noite); houve tiros até cerca de 4 e 30 da madrugada. Parece que os ingleses só passaram para Berlim, onde a coisa esteve braba!" (p.99)


"10.X.1940 – Alarme = 9,40.

Outra vez alarme: 12,05 depois da 2o Entwarnung [fim de alerta], ainda houve tiroteio brabo, que durou até quase a madrugada.

(ataque duro!)

_______________

13.X.1940 – Alarme, às 12,30.

Ontem chegou ao Consulado a comunicação de que não receberemos mais gasolina.

_______________

14.X.1940 – Alarme, às 9,40.

Noite clara. Clarões. Nenhum holofote. Tiroteio brabo.

Entwarnung.

Alarme, outra vez = à 1,30.

_______________

15.X.1940 – Alarme, às 9,40.

2o Alarme, às 12,30. _______________

16.X.1940 – Alarme, às 9,55." (p.100)


"16.X.1940. Colunas curvas, de leite = holofotes: E piscam, instantâneas, efêmeras estrelinhas alaranjadas, no alto do céu. Há também, impassíveis, as estrelas de verdade..." (p.103)


"25.X.1940 – O ataque de ontem à noite foi o mais sério e terrível de quantos houve até hoje. Das 9 e 30 às 3,30, e depois das 4 e tanto até às 6 da manhã. Sempre com tiros e bombas tremendas. Parece que se inaugurou para nós uma nova fase da guerra aérea. Será que começou mesmo o fim do mundo?! O trovão das bombas se repetia, infernal." (p.103)


"16.XI.1940. O tiroteio está brabíssimo hoje também. Já explodiram bombas!

As portas e janelas da minha casa batem, golpeiam." (p.98)


"15.III.1941 – De ontem para hoje não houve alarme. Pude dormir e recuperar os nervos. Até às 12,30, dormi, vestido, no sofá, esperando as sirenes." (p.99)


"3.V.1941.

Para amanhecer hoje, houve um grande alarme e tiroteios. Fiquei na cama, entre o sono e a vigília." (p.98)


"11.V.1941 (Domingo) – Hoje, às 7 da manhã, acordou-me o telefone. Era o Cônsul Geral – o Consulado havia sido atingido por uma bomba. Eu levantei, estremunhado e com dor de cabeça, porque só tinha dormido 3 horas e pouco.

O Cônsul Geral veio apanhar-me, com a Buik. Fomos. Terrível, o estado de nosso pobre Consulado!..." (p.98)


"18. Maio [1941] (Domingo) = Na noite de 18 → 19 = alarme, ataque aéreo.

Bombas. Uma "lanterna" (corpo iluminante) caiu, ao lado da minha casa. Assustei-me, esperando bombas!" (p.97)


Não me cabe aqui uma análise histórica ou estética dos trechos do diário que Guimarães Rosa escreveu enquanto foi cônsul-adjunto do Brasil em Hamburgo. Para tanto o ensaio de Guinzburg é bastante valioso. Recorro aos trechos acima porque me pareceram valiosos, por sua vez, como ilustração do esforço de um sujeito de condensar excessos de sentidos intraduzíveis que vieram do Outro em forma de violência.

Não tenho recursos para afirmar que Rosa teria sido traumatizado pelos eventos de guerra que viveu. Mas o esforço de tradução desses eventos num diário pode ser pensado como uma tentativa de não-calar, um trabalho de forçar palavras num real, de dar tratamento figurativo-causal-significativo para o que extrapola a representação, se furta à razão e excede a palavra: os horrores da guerra.

O caráter fragmentário das anotações - embora factível para um diário - sugere um observador tomado pelo susto dos tiros/bombas e alarmes e, ao mesmo tempo, atento à colisão entre natureza/vida e destruição. (Como propõe Seligmann-Silva, "o diário é uma escritura louca, se aceitarmos que não é pura factografia, mas trabalho de acumulação criativa de fragmentos. (SELIGMANN-SILVA, M. Walter Benjamin e a guerra de imagens. São Paulo: Perspectiva, 2023, p. 60)). Talvez não seja demais tomar o diário de guerra de Rosa como um memorial da angústia.

Os registros de alarmes como acontecimentos/marcas únicas de alguns dias, a preocupação com o registro exato da hora do alarme - que passa a ser esperado para qualquer momento -, como um grito de fogo, e os tiros/bombas, como um grito de ódio, escarificam o corpo com excessos violentos que o autor busca transpor/traduzir no diário, objetificar com palavras e imagens que, neste caso, são bem servidas pelo talento roseano. Os registros "alarme", "alarme às", "alarme, outra vez", "bombas", "tiroteio brabo", "o tiroteio está brabíssimo", "o trovão das bombas", "estampidos surdos", "mugiram as sirenes", "espoucos", "socos retumbantes", "bombo", "tambor", "as portas e janelas da minha casa batem, golpeiam" refletem o trabalho mimético do dizer ativo do que se recebe no corpo passivamente. Mas o corpo não é marcado somente de coisas ouvidas; as coisas vistas também se fazem presentes: "holofotes", "holofotes imóveis", "cones cruzados", "colunas curvas, de leite = holofotes", "uma lanterna caiu ao lado da minha casa".

Vejamos a leitura de Guinzburg sobre a presença marcante dos registros de alarme:

"Há aqui algo que corresponde, sem dúvida, a um fenômeno próximo do unheimlich freudiano. O alarme se torna uma espécie de elemento rotineiro das vivências do escritor, mas ao mesmo tempo é um sinal que precisa ser destacado pelo registro, com um espaço mínimo dedicado a outros assuntos (o Consulado, a gasolina, a noite). O alarme ganha uma função conotativa fundamental.

Ele é um elemento antagônico. O alarme é algo cujo sentido de uso prático em princípio é óbvio, como mecanismo de controle social. Ao mesmo tempo, com sua repetição vertiginosa, em horários variados, provocando no escritor um efeito de absorção, e por fim, de regressão de linguagem à reiteração, o alarme se torna uma espécie de instrumento agressivo, atuando como um mecanismo de tortura, um buraco negro do pensamento, que se obriga a recuar diante da escuta, por insegurança e vulnerabilidade. [...] Não temos dúvida de que alarmes eram reais e atormentavam Rosa. Examinando a construção textual, quando os alarmes se convertem em uma construção reiterativa do campo verbal, eles se caracterizam como uma metonímia de um amplo campo de acontecimentos – um contexto histórico pautado pela destruição, condicionado pela violência constante." (p. 100-1)

O alarme se torna no diário de Rosa a alegoria da morte a chegar mais perto a cada dia: dos aviões de passagem a Berlim em 2/3/40 à "lanterna" que caiu ao lado de sua casa em 18/5/41. Os obsessivos registros de dias, vezes, horas e minutos dos alarmes sugere um exercício lógico quase desesperado de mapeamento dos movimentos aleatórios dessa morte. Saber que a qualquer momento um ataque aéreo pode acontecer, esperar por ele sem saber para quando e estar ciente de que num deles uma bomba poderá atingir minha casa: o que leva alguém a registrar cuidadosamente num diário - que poderá restar entre os escombros - o que marcava o relógio no momento em que soou o alarme?

Além de sinais de localização da morte os alarmes parecem guardar, pela força da repetição, a presença absurda do mesmo instante. Algo do mesmo se repete fazendo dobras no tempo: a contingência do primeiro alarme constelou o que Rosa pode ter visitado do segundo alarme em diante (um trauma?). A urgência de distribuir obstinadamente, pelos dias e horas, a recorrência arbitrária dos alarmes, advém, entendo eu, da necessidade de separar um alarme do outro, de não vivê-lo como dobra temporal pela qual se volta a visitar sempre o primeiro. Nesse sentido, a anotação de cada um dos alarmes não é somente sustentar um não calar-se diante de sua violência, mas também dar voz e trato ao horror que com eles e neles se apresenta: Rosa e o alarme ou o alarme de Rosa - algo de uma intimidade impossível e absurda que a diária inscrição buscou tornar um cotidiano suportável.

Quer como acorde estridente a acompanhar a dança macabra e aproximativa da morte na forma de holofotes a cruzar os céus e parábolas de bombas a chover mais perto, quer como portal do tempo a romper continuidades e costurar a permanência de um instante em repetições sanfonadas, o(s) alarme(s) faz(em) o diário de Rosa regredir ao memento - mas também grita para fazer do horror, história.

"Da calmaria de meu quarto / vislumbro um baile macabro / que equipei de certo ritmo / para entenderem o que digo; / Espero tornar evidente / que nossa carne é decadente; / Esteja sempre bem vestido, / aprume-se para o infinito." (BARTH, Ferdnand. [1865]. O labor da morte: uma dança macabra. São Paulo: Editora Sebo Clepsidra, 2020, p. 32).

(Até certo ponto é enigmático o porque de Rosa usar o idioma alemão para os termos de guerra: Verdunkelung [queda de energia, blecaute, mas também toque do alarme], Flak [artilharia antiaérea, mais precisamente: Flugabweherkanone = canhão de defesa contra aviões], Entwarnung [fim de alerta]. Podemos supor que fossem termos ditos e gritados em seu entorno naqueles momentos de urgência e registrados como traços mnêmicos.)

Passemos agora para o seguinte longo trecho de Guinzburg, no qual analisa o modo como o olhar contemplativo de Guimarães Rosa faz, das mudanças na relação que vê entre natureza e destruição, a transmissão mimética do avanço da guerra.

"Em 18.12.1939, havia "a mesma escuridão de sempre", uma natureza habitual para os costumes da percepção, ordenada em sua distribuição de escuridão e luz, mas já com sua proporção de fantasmagoria. Em 25.2.1940, um crepúsculo estranho trazia a exposição inesperada de sombras avessas, e apareciam os holofotes. / Ali ficava ostensivo o problema de que o olho que contemplava satisfeito o céu também perceberia os movimentos táticos de combate. Era o mesmo olho, e isso poderia ocorrer, frequentemente, em um mesmo movimento ocular. A partir de então, no "Diário", isso se constitui como um problema de âmbito verbal. O que o olho não consegue separar, a manifestação verbal também não dissocia. O avião vai estragar a constelação. / O problema perceptivo ganha maior atenção em 2.3.1940, com a delimitação do ângulo do alvo, entre a Ursa-Menor e o galho do olmo em frente à casa, determinando que o mesmo olho é obrigado a encarar em um único gesto perceptivo a guerra, o universo e o espaço do próprio sujeito. / Com isso, não surpreende que as imagens da natureza passem a metaforizar, em 4.6.1940, efeitos de impacto de bombas, no caso de pulos de um peixe na água. A natureza foi tomada pela guerra: a paisagem foi tomada pela guerra; o olho de quem escreve foi tomado pela guerra. O olho acompanha a cadaverização, a aniquilação generalizada, com o deslocamento em 19.6.1940 de imagens anteriormente mencionadas, como o peixe e a árvore – "Houve peixes mortos, galhos de árvores arrancados, vidraças partidas." / O texto de Rosa apresenta, ao longo de sua elaboração, processos destrutivos, entre eles: a destruição da cidade de Hamburgo, suas casas transformadas em ruínas; a aniquilação de elementos da natureza, árvores, os peixes mortos; a explosão do Consulado do Brasil; a morte de muitas pessoas, incluindo crianças." (GUINZBURG, J. Idem, p. 103-4).

Mbembe é incisivo quando diz que a necropolítica exige visibilidade (MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018). Os buracos de bomba na praça, as ruínas, árvores mutiladas, estilhaços espalhados... a destruição se visualiza pelo despedaçamento dos elementos que antes formavam uma paisagem cotidiana. Há de se suspeitar do quanto tal descrição busca traduzir também a subjetividade de quem experiencia a guerra. Só podemos mergulhar na dimensão mimética das anotações de Rosa, isto é, o quanto elas dizem do que se repete há séculos nas guerras e trazemos escrito no corpo transmitido por gerações, se pudermos lê-las sem retirar-lhes o que têm de vísceras da história.

Rosa parece dar-se conta da dialética que há entre o inefável da imensidão da natureza e o horrível do espetáculo da guerra. Para dar conta da passagem de um indizível ao outro, ele tenta revelar o outro pelo um: elementos da natureza para metaforizar eventos de guerra e a mesma natureza destruída para tentar dizer do contranatural daquela. Nas anotações do autor a natureza se oferece poeticamente ao zelo de dizer a guerra e esta devolve a primeira em seu estado cru e violentado.

A tomar as observações de Freud na nota sobre o bloco mágico, podemos sustentar a relação de semelhança entre o diário e o aparelho psíquico:

"Quando não confio em minha memória […] posso suplementar e garantir seu funcionamento tomando nota por escrito. Nesse caso, a superfície sobre a qual essa nota é preservada, a caderneta ou folha de papel, é como se fosse uma parte materializada de meu aparelho mnêmico que, sob outros aspectos, levo invisível dentro de mim." (FREUD, S. Uma nota sobre o bloco mágico. Obras completas, Vol. XIX, Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 255.)

Mas Freud acrescenta a essa semelhança o modelo do bloco mágico, cujo celuloide e papel encerado corresponderiam ao sistema perceptual-consciente, enquanto a prancha de cera, na qual o traçado feito na superfície dos dois primeiros se mantém, ao sistema inconsciente. Freud ressalta a função de escudo protetor do celuloide para evitar que traços pontiagudos possam atingir diretamente a folha de cera, de modo a danificá-la permanentemente, ou seja, produzindo uma marca que não se apagará quando do levantamento das duas primeiras folhas, tal como acontece no funcionamento normal do dispositivo. Não seria por demais incorreto formularmos que os excessos de sentidos no sistema Pcpt.-Cs. deixariam marcas permanentes no papel encerado, de modo a causar erros e confusões de leitura quando da escrita de novas informações sobre o sistema. Estas marcas permanentes no papel encerado, frente às quais o celuloide não pôde funcionar como escudo protetor, vamos considerar como traumas.

Talvez haja, nos diários que vêm a público como testemunhos de um local/momento da história, algo desse bloco mágico com o papel encerado danificado. Eles não são um periódico de fatos arrolados e nem, abertamente, a prancha de cera sobre a qual tudo estaria acumulativamente registrado. O Angelus Novus de Klee, na alegoria de Benjamin, é o único capaz de ver a prancha de cera como uma catástrofe única, lá onde vemos cadeias de acontecimentos. Quando não damos ouvidos ao Anjo da História, resta-nos a cadeia de acontecimentos que nos é legada pelos nossos periódicos diários e redes sociais, feitos para que logo levantemos as folhas da prancha de cera de modo a zerar a superfície para a coleta de novas informações do dia seguinte; o negacionismo supremacista, do ponto de vista do bloco mágico freudiano, consiste em colocar todas as forças no funcionamento do celuloide do dispositivo, de modo a "silenciar" os funcionamos do papel encerado e da prancha de cera: é como se tudo se passasse como se não houvesse testemunho histórico, apenas registro de fatos; como se não houvesse acúmulo de ruínas, apenas fatos ruins que se apagam no dia seguinte, com o levantamento das folhas do bloco mágico. Mas temos também os diários, as anotações reflexivas, os ensaios compostos afetivamente, os registros de oralidade daqueles que, mediante a preservação da ancestralidade, em oposição e resistência à noção celulósica de progresso, são capazes de se deter no papel encerado, suas ranhuras e danos, seus índices de acontecidos, suas relações tanto com o escudo de celuloide quanto com a prancha de cera. A tomar o que nos escreve Seligmann-Silva:

"Os traços materiais inscritos no diário podem se desdobrar em características sensíveis, tal como o estado do papel, a caligrafia, os borrões de tinta, as rasuras etc, que reforçam o seu teor testemunhal. Quando falamos de diário, a sua base material torna-se um importante elemento da obra. Vemos o diário como parte do evento narrado, e não como observação de segunda ordem. Por mais equivocada que essa percepção possa ser, pois não existe grau zero da apresentação dos fatos. […] É como se no diário se fundissem autor, texto e temporalidade. […] O texto final transforma-se em um dique. A potência que guarda pode ser transformada em energia mesmo depois dos fatos passados, justamente porque na estrutura do texto entrecruzam-se, em uma trama, a vida íntima com a pública, o trabalho literário com as marcas do 'real'." (SELIGMANN-SILVA, M. Walter Benjamin e a guerra de imagens, São Paulo: Perspectiva, 2023, p. 58-9.)

Seligmann-Silva aponta, ainda, a dimensão de escrita performática presente nesses diários. Entendemos que o performático aqui, não apenas vale pela entrada e presença fundamental do corpo de quem escreve, mas também pelo que de ato ali se verifica não somente com o escrever, mas com o inscrever, isto é, o deixar gravada a potência dos fatos registrados.

Difícil afirmar que há trauma num diário, mas também difícil dizer que não há, uma vez que nos autorizemos a localizar nele seja a potência, seja o dano do papel encerado.

No nosso sobrevoo sobre os trechos que temos do diário de guerra de Guimarães Rosa, de 18 de dezembro de 1939 até 18 de maio de 1941, testemunho breve de um ano e cinco meses, podemos ver sua tentativa de ser mais do que um celuloide. Ele não visou encadear fatos (um diário não é uma factografia, como nos diz Seligmann-Silva), mas inscrever índices afetivos por meio de elaborações quase-miméticas, ou mimetismos quase-elaborações. A poesia do diário não é a do poeta tranquilo e inspirado, mas a do tratamento da angústia, do forçamento simbólico para aquilo que excede ao se escrever. Esforço performático para inscrever num campo de sentido o que possivelmente o escudo de celuloide não teve recursos para conter. Um exemplo:

"(19.VI.1940) – Estou escrevendo na cama, ao som dos estampidos da Flak. Alguns são tétricos: como socos retumbantes, dados por punhos enormes no bojo elástico do ar alto. Outros ribombam festivos." (p.102)

Outro exemplo:

"16.X.1940. Colunas curvas, de leite = holofotes: E piscam, instantâneas, efêmeras estrelinhas alaranjadas, no alto do céu. Há também, impassíveis, as estrelas de verdade..."

Em 19 de junho de 1940 Guimarães Rosa escreveu sob o som de fortes estampidos. Sua memória força ligações entre o ruído da Flak - contração de Fliegerabwehrkanone, ou seja, canhão de defesa antiaérea, como vimos - e fogos de artifícios de outras memórias. Já em 16 de outubro ele escreveu olhando a paisagem do ataque aéreo, marcando uma inusitada igualdade matematicamente sinalizada entre colunas de leite e holofotes, além da delicadeza do diminutivo aplicado para efêmeras estrelinhas alaranjadas, no lugar de explosões de bombas caçando aviões. Vale destacar o sentido forte atribuível ao "Há também, impassíveis, as estrelas de verdade", como registro da noite aberta que havia naquele exato instante assim constelado.

Talvez o exemplo mais poético, neste caso, seja o da primeira anotação de nosso acesso ao diário:

"18.12.1939

À noite, saí do Consulado: a mesma escuridão de sempre – Verdunkelung [queda de energia, blecaute, mas também toque do alarme]. Céu azulado, com estrelas. Cá em baixo, a treva, e uma névoa fantasmagórica dissolvida na treva. Luzes há, pequeninas errantes, rápidas, irreais, como vaga-lumes." (p.101)

O registro começa pelo cotidiano "à noite, saí do consulado", com a repetição realçada: "a mesma escuridão de sempre […] Céu azulado, com estrelas". Mas logo vem a ressalva anímica de novos e ruins tempos: "Cá em baixo, a treva, e uma névoa fantasmagórica dissolvida na treva." Faz-nos lembrar, num contexto diverso, do primeiro verso de "O bêbado e o equilibrista", de 1977, de Aldir Blanc e João Bosco: "caia a tarde feito um viaduto", verso este, também, fazendo ecoar notas de um diário, com a materialidade da morte recente de Chaplin e da queda trágica, anos antes, do elevado Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro.

Entre o cotidiano e a estranha densidade do momento, a nota de Rosa traz a surpreendente e estrangeira presença de Verdunkelung, cuja tradução direta é sombria. Essa dimensão do sombrio, do blecaute com a dança de holofotes e o show de estrelas efêmeras das bombas, somada ao ritmo descompassado dos alarmes e à percussão histriônica das Flaks, servem como partes de um todo angustiante e inapreensível que atravessa o diário. Seu efeito é metonímico e fragmentário na tentativa de apreensão do que escapa, como vimos.

Vejamos como, por outras vias, Seligmann-Silva trata disso:

"Por um lado, podemos identificar no diário algo como as marcas e traços do presente de sua escritura. O diário produz páginas que se embaralham com o cotidiano do autor-protagonista, e somos tocados pelo ar que a personagem respirava. Tendemos a ver nele um testemunho, ou seja, um índice, metonímia, e não uma metáfora, que é tradução imagética e mais elaborada dos fatos arrolados. Além disso, o diário possui uma respiração, um ritmo, que se expressa e aponta para a situação anímica e corpórea do autor." (SELIGMANN-SILVA, M. Walter Benjamin e a guerra de imagens. São Paulo: Perspectiva, 2023, p. 58.)

No Diário de Guerra de Rosa as palavras serviram aos afetos, ou seja, permitiram enxertar corpo ao seu dizer, numa época em que os afetos foram utilizados em larga escala para o estrangulamento da razão.

Enfim, creio que eu possa resumir a partir da anotação de 30/5/40, dizendo que Guimarães Rosa agarra-se ao seu diário tal como Francolim à cauda do Sete-de-Ouros e ouve mugirem as sirenes em meio à chuva de bombas que se aproxima e poderá afogar todos.


De nossa parte, tendo todos nós atravessado recentemente, e ainda, anos de presença fascista, genocídios, pandemia, guerras e emergências ambientais o que fizemos de nossos diários? É preocupante, em certa medida, observar uma tendência ao esquecimento, à hipervalorização dos celuloides (e celulares) cotidianos de modo a deixar escondidas as marcas dos papéis encerados que carregamos, uns mais, outros menos (os privilegiados, como o próprio Guimarães Rosa o foi, apesar de tudo).

Segue acelerado o acúmulo de ruínas na prancha de cera, mas tendemos a fugir do querer vê-la e corremos para as nossas séries, redes e consumismos os mais diversos (de relações, inclusive).

Onde estão os diários destes últimos mais recentes anos? Quando poderão aparecer na sua condição de trauma?

Podemos ouvir as pessoas com medo, sem horizontes, enraivecidas e irritadas, cansadas, negando os próprios furos, desencontrando o gosto de viver. Talvez tenhamos que dar a estes afetos o estatuto de marcas no papel encerado e ler o que dizem como diário potencial destes últimos anos. E, quem sabe, buscar lá a potência e a poesia guardada pelos diários.

Por fim, vale notarmos o movimento crescente e decolonial em direção aos saberes que se sustentam tradicionalmente na oralidade. Seria interessante pensarmos o quanto a oralidade, embora se oponha em certa medida à escrita, nos recoloca mais próximos da escrita performática do diário, uma vez que a oralidade valoriza o registro corporal dos acontecimentos, isto é, o papel encerado e a prancha de cera mais do que a imediaticidade e a efemeridade do celuloide (considerando que o campo abrangido pelo celuloide não se limita ao escrito, mas também à gigantesca quantidade de vídeos e áudios que nada deixam de inscrito, nada carregam de corpóreo, potência ou poesia). Quiçá possamos dar força, na teoria literária do diário, à tese de que o diário é a herança mais direta da oralidade numa cultura letrada.


CCCXXI


"O presente se mescla com o vivido em cada ato, no resgate e na ação. O desenterro dos livros tem a ver com um aspecto da repressão que durante anos esteve em um segundo plano, mas que agora se pode abordar e que é importante rever. Por medo, queimamos nossos próprios livros, uma parte de nós mesmos." (BRODSKY, M. Nexo. Buenos Aires: Centro Cultural Recoleta. 2001, p. 122).

Em equivalência com esta ideia de Brodsky, que virou uma de suas mais fortes obras, o que enterramos de nós mesmos quando estamos com medo? Quantas pessoas que nos procuram cotidianamente trazem seus livros enterrados, seus objetos escondidos por conta do medo, também cotidiano? Como não perguntar a pessoas que chegam em análise: onde e quais são seus livros enterrados? O que o medo as fez enterrar e o que podemos fazer para desenterrá-los? Que restos, que fragmentos, que pedaços de histórias encontramos no desenterro dos traumas de cada um? E o que nós, como analistas, e aqueles que nos falam, como analisantes, fazemos com seus desenterrados?

No ato do desenterro dos livros da obra retratada por Brodsky temos também um forçamento daquilo que fica entre o resgate e a exumação de ideias naquele momento proibidas. Haverá, ainda, lugar para elas? Do mesmo modo, daquilo que desesquecemos em análise e que muito diz de desejos interrompidos, qual lugar para eles? É possível atualizá-los? Ficaram obsoletos? Ou será que nos deparamos, espantados, com sua obscura presença em inexplicáveis coisas que fazemos, fizemos e escolhemos meio sem saber?

O medo noturno de cemitérios, daquele encontro furtivo com estranhos e impensáveis, talvez não seja outra coisa que não uma dimensão mimética entre o passado enterrado e o forçosamente arquivado em nossos inconscientes. Não há medo de fantasmas que não seja, em alguma medida, medo de desesquecer/desarquivar e medo de se haver com as violências implicadas no instante e na necessidade do esquecimento. Se Nietzsche deixou nítida a relação entre a dor e a memória - o castigo como marca de algo a não ser esquecido -, Freud, por sua vez, mostrou como o excesso de sentido da dor produz um resto, um cálculo que não se deixa ligar a uma representação: não pode ser esquecido, mas tampouco tem recursos pra ser lembrado. O trauma é um arquivo fora do simbólico e do imaginário. Um arquivo real. Anarquivar o trauma tem algo de forçá-lo em gavetas simbólicas e imaginárias. A arte sabe fazê-lo e uma análise busca, ao não dar as mãos às forças arquivadoras, abrir gavetas do real para que algo aconteça com o material ali enxotado. Venho insistindo, neste sentido, na importância de dar nomes às forças arquivadoras, como meio de resistir e enfrentá-las, ainda que tardiamente.


FEVEREIRO 2024


CCCXX


No mundo da eterna repetição, desejar perde o sentido e cede lugar para o tédio e a melancolia.

O eterno retorno cosmológico de Blanqui não deixa de ser a representação projetiva da sociedade na qual toda novidade serve ao mesmo princípio de redução à exploração do trabalho, à mercadoria e ao consumo. Monotonia e monocultura do progresso como mito moderno à serviço da dominação capitalista. Segundo Anita Schlesener:

"A mesma monotonia, que é a medida de todo o universo, reproduz- se na história moderna que, como o eterno trabalho de Sísifo, se concretiza como repetição da dominação, da repressão, do sofrimento e do fracasso das tentativas revolucionárias." (SCHLESENER, A H. Tempo e história: Blanqui na leitura de Benjamin. In: História: Questões & Debates, Curitiba, n. 39, p. 255-267, 2003. Editora UFPR, p. 257.)

Olgária Matos, por seu tempo, apresentou esta relação entre o cosmos de Blanqui e a modernidade emergente em seu século do seguinte e poético modo:

"Do cosmos antigo, cujo silêncio enchia Pascal de angústia e pavor, emanavam os eflúvios de Saturno que tornavam o homem refinado e sensível, ao mesmo tempo que moroso e indeciso, desesperado e inconsolável. Da Melancolia, Anjo visionário e de Imaginação alada da Renascença, só restam o tédio e o Eterno Retorno. […] Benjamin reconhece em Baudelaire, Nietzsche e Blanqui a percepção desse tempo estagnado e patológico que converte o 'palácio de cristal' do consumo capitalista, em suas passagens e galerias feéricas, em labirinto sem saída, um tempo espacializado, plasmado numa mens momentanea, sem passado e sem futuro, sem experiência." (MATOS, O.C.F. Louis-Auguste Blanqui e o século XIX: uma história política do céu. Limiar, Vol. 3, nr. 6, 2016, p. 136-7.)

Vejamos como isso aparece na pluma melancólica de Blanqui:

"Todo astro, qualquer que ele seja, existe, portanto, em número infinito no tempo e no espaço, não somente sob um de seus aspectos, mas tal como ele se encontra em cada um dos segundos de sua duração, desde o seu nascimento até a sua morte. Todos os seres distribuídos por sua superfície, grandes ou pequenos, vivos ou inanimados, partilham o privilégio dessa perenidade. A Terra é um desses astros. Todos os seres humanos são, assim, eternos em cada um dos segundos de sua existência. O que estou escrevendo agora, em uma cela do Fort du Taureau, escrevi e escreverei por toda a eternidade, a uma mesa, com uma pluma, vestindo esses trajes, em circunstâncias, todas, semelhantes. O mesmo vale para todas as pessoas." (BLANQUI, L.-A. A eternidade pelos astros. Rio de Janeiro: Rocco, 2016, p. 121-2.)

Com duas condenações à pena de morte e mais duas à prisão perpétua somadas a uma condenação ao exílio, o revolucionário francês admirado por socialistas e anarquistas, que passou meia vida na prisão, vê-se eternamente preso na repetição de suas tentativas frustradas de libertar o mundo das forças dominadoras da modernidade. O mundo moderno, ao colonizar as formas não dominadoras de relação com a natureza, mimetiza a repetição esvaziada dos laços astrais, mas impressiona ver como Blanqui denuncia isso por meio da embriaguez cósmica, via poética de retorno da própria relação que a modernidade julga ter colonizado.

Schlesener, citando Benjamin, permite-nos ver com mais nitidez essa diferença entre modos pré-moderno e moderno de existir:

"A partir do último fragmento de Rua de mão única, que se denomina A caminho do Planetário, percebe-se que esse tema já fazia parte das reflexões de Benjamin em 1927. Benjamin acentuava ali a radical diferença entre os antigos e os modernos na sua experiência do espaço e do tempo dizendo que o 'trato dos antigos com o cosmos cumpria-se na embriaguez', na vida comunitária: 'É embriaguez, decerto, a experiência na qual nos asseguramos unicamente do mais próximo e do mais distante, e nunca de um sem o outro.' […] Na cultura antiga o termo embriaguez se remetia à tradição dionisíaca em que convergiam o erótico e o político, cuja origem se encontrava no cotidiano dos que estavam à margem da orden social reconhecida e sacralizada. O mundo dionisíaco era a expressão do movimento cósmico liberador, da poderosa força vital que emana das coisas e que integra o homem à natureza. Trata-se de uma força instintiva não domesticada, avassaladora, incontrolável e evanescente, que escapa ao controle meticuloso da razão e envolve principalmente os que se encontram fora da esfera do poder, constituindo-se, na maioria das vezes, na força propulsora de sua ação: é na esfera popular que erótico e político se combinam na insurreição e na conspiração política, objetivos da atuação de Blanqui." (SCHLESENER, A H., idem, p. 258-9)

E mais adiante a autora propõe:

"O mundo dos sentidos, que se identifica com o mundo natural e que permitia a conciliação do homem com a natureza no mundo antigo, agora é domesticado, submetido, para cumprir os objetivos do mundo do trabalho. O 'ameaçador descaminho dos modernos é considerar a experiência (do comunicar-se em embriaguez com o cosmos) como irrelevante, como descartável' e relegá-la ao indivíduo isolado. O rompimento dos elos com o passado se manifesta no individualismo, no isolamento do homem moderno reduzido a uma mercadoria, na perda do olhar, que se traduz em perda da capacidade de contemplação (contemplar tornou-se 'devaneio místico'). (Idem, p. 259.)

Pois bem, confessemos que é difícil para um leitor lacaniano não traçar correspondências entre a embriaguez cósmica e o sentimento oceânico freudiano e, num salto voraz, encaixar o modo moderno de existir do lado do gozo fálico e o modo pré-moderno do lado do gozo de S(A) barrado. Mas talvez seja o caso de tomar esses diferentes modos de gozar numa perspectiva que inclua a história e a dominação, isto é, modos predominantemente colonizadores e colonizados e modos predominantemente descoloniais e contra-coloniais de gozar.

É muito difícil não vermos aqui ecos das críticas de Davi Kopenawa Yanomami ao povo da mercadoria e das preciosas lições presentes no Futuro ancestral de Ailton Krenak, modos de saber indígenas que articulam a embriaguez cósmica e o pertencimento comunitário à natureza em oposição à cosmofobia burguesa denunciada também por Nêgo Bispo.

Senão vejamos algumas passagens dos mesmos. Primeiro Davi Kopenawa Yanomami:

"Nós, que somos povo da hutukara, do céu xamânico, pensamos diferente: os napëpë [não indígenas] pensam de uma forma e nós Yanomami de outra e assim é. Në ropë [a riqueza das florestas] nos deixa felizes! E por quê? Porque plantamos comidas nas roças e os alimentos crescem nas roças. Por cultivarmos essas plantas, nos alimentamos e isso nos deixa felizes! O que deixa os napëpë felizes são outras coisas: eles ficam felizes pela comida, só que o dinheiro também os deixa muito felizes, assim como o petróleo os deixa felizes. Voar de avião os deixa felizes, eles ficam felizes com os carros. Ter uma casa bonita e brilhante os deixa felizes, assim como tomar água gelada também deixa os napëpë felizes. Fazer os outros trabalharem para eles ou fazer com que os homens influentes lhes deem empregos os deixa felizes. São muitos os napëpë que vivem felizes assim, mas në ropë não os deixa felizes." (YANOMAMI, D.K. Në ropë. In: Terra: antologia afro-indígena. São Paulo/Belo Horizonte: Ubu, 2023, p. 333-42, p. 335.)

Agora Ailton Krenak:

"Para além de onde cada um de nós nasce - um sítio, uma aldeia, uma comunidade, uma cidade -, estamos todos instalados no organismo maior que é a Terra. Por isso dizemos que somos filhos da terra. Essa Mãe constitui a primeira camada, o útero da experiência da consciência, que não é aplicada nem utilitária. Não se trata de um manual de vida, mas de uma relação indissociável com a origem, com a memória da criação do mundo e com as histórias mais reconfortantes que cada cultura é capaz de produzir - que são chamadas, em certa literatura, de mitos. As mitologias estão vivas. Seguem existindo sempre que uma comunidade insiste em habitar esse lugar poético de viver uma experiência de afetação da vida, a despeito das outras narrativas duras do mundo. Isso pode não ter um significado muito prático para concorrer com os outros em um mundo em disputa, mas faz todo sentido na valorização da vida como um dom." (KRENAK, A. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, p. 103-4.)

Mais uma vez Ailton Krenak:

"Há uns 30 anos, uma dessas grandes redes de supermercado me procurou querendo que eu indicasse qual povo indígena que poderia produzir 10 mil balainhos para eles. Eu respondi: 'Nenhum'. Aí ele falou: 'Mas por quê?' Eu falei: 'Porque nós não somos idiotas'. Só um idiota pode produzir dez mil balainhos iguais, nunca vai ter dois balainhos iguais. Aí me disseram: 'Mas que absurdo, o que é que custa os índios fazerem 10 mil balainhos iguais?'. Eu expliquei: 'Olha, ele tem 10 mil outras coisas interessantes para fazer. Ele termina um balainho e vai fazer outras coisas. Os brancos é que são capazes de ficar fazendo 10 mil objetos iguais.' E ainda ficam felizes, pensando: 'Nossa, tudo igual, que bonito'." (KRENAK, A. & CAMPOS, Y. Lugares de origem. São Paulo: Jandaíra, 2022, p. 74.)

Agora é a vez de Nêgo Bispo:

"Assim, como dissemos, a melhor maneira de guardar o peixe é nas águas. E a melhor maneira de guardar os produtos de todas as nossas expressões produtivas é distribuindo entre a vizinhança, ou seja, como tudo o que fazemos é produto da energia orgânica esse produto deve ser reintegrado a essa mesma energia. Com isso quero afirmar que nasci e fui formado por mestras e mestres de ofício em um dos territórios da luta contra a colonização." (BISPO DOS SANTOS, A. Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília: AYÔ, 2019, p. 66.)

E mais uma vez:

"Os humanistas querem nos convencer de que a globalização é uma convivência ampla, quando de fato não é. Em vez de compreender o globo de forma diversal, como vários ecossistemas, vários idiomas, várias espécies de vários reinos, como dizem, quando eles falam em 'globalizar', estão dizendo 'unificar'. Estão dizendo moeda única, língua única, mentes poucas. A globalização para os humanos não existe, o que existe para eles é a história do eurocentrismo - da centralidade, da unicidade. O que chamam de globalização é universalidade. Não no sentido que nós entendemos por universalidade, mas no sentido da unicidade. […] Os humanistas não querem globalização no sentido diversal, mas no sentido de unificar, de transformar tudo em um. Quando falam de indivíduo, falam de unicidade. Nós, quando falamos de indivíduo, estamos falando de unidade, estamos dizendo 'um', mas esse 'um' é parte do todo, do universo. Se para os humanistas o 'um' é o universo, para nós só há 'um' porque há mais de um. Percebemos uma diferença entre ser 'um' e ser único, enquanto para eles, o 'um' e o único são a mesma coisa. Quando dizemos 'globo', estamos englobando e, ao mesmo tempo, reconhecendo as individualidades que existem dentro do globo. Essa é uma questão germinante, que precisa ser tratada e cultivada." (BISPO DOS SANTOS, A. A terra dá, aterra quer. São Paulo: Ubu, 2023, p. 32.)

Nestes autores podemos ver que a mimese, o jogo fantasioso (como experiência infantil), o encantamento mágico, a embriaguez cósmica (êxtase) e a narração (historicamente vinculada à transmissão oral) são elementos de epistemologias pré-modernas e, até certo ponto, resistentes às ideologias capitalistas do progresso, uma vez que se ligam a tradições e experiências comunitárias, não individualistas e consumistas. É interessante notar o lugar que Benjamin também dá a esses elementos em seu pensamento e o quanto busca reavivá-los como ferramentas críticas. Esses elementos acima devemos buscar, talvez, em camadas relacionadas ao recalque: no conteúdo de fantasias, na formação de sintomas, na causalidade de angústias, nas petrificações inibitórias, nos fenômenos somáticos e epifânicos. Seguem sendo, portanto, resistentes às ideologias capitalistas de progresso, muito embora predominantemente em suas formas subjetivas e não nas objetivas. Não deve ser à toa que, em circunstâncias clínicas em que elementos considerados aqui pré-modernos - como uma experiência comunitária verdadeiramente rica, por exemplo - são assumidas e sustentadas objetivamente no laço social, reduzem-se ou desaparecem em suas formas subjetivas distorcidas e recalcadas.

Por uma lógica bastante freudiana do Retorno, não Eterno, mas do recalcado, no mencionado aforismo Para o planetário, Benjamin leu nas catástrofes da Primeira Guerra - o livro Rua de mão única foi publicado em 1928 -, a volta das experiências das forças cósmicas que os modernos consideraram irrelevante é desprezível:

"[…] só em comunidade o homem pode comunicar

com o cosmos em êxtase. A desorientação que ameaça os modernos vem-lhes de considerarem essa experiência irrelevante e desprezível e de a verem apenas como vivência contemplativa individual em belas noites estreladas. Não, ela voltará sempre a impor-se, e então nem povos nem gerações lhe escaparão, como se viu, da forma mais terrível, na última guerra, que foi uma tentativa de religação, nova e inaudita, com as forças cósmicas. Massas humanas, gases, energias elétricas foram lançados em campo aberto, correntes de alta frequência atravessaram as paisagens, novos astros apareceram no céu, o espaço aéreo e as profundezas dos mares ressoavam de hélices, e por toda parte se escavavam fossas sacrificiais na terra-mãe. Esse grande assédio feito ao cosmos consumou-se pela primeira vez à escala planetária, isto é, no espírito da técnica. Mas como a avidez de lucro da classe dominante pensava satisfazer a sua vontade à custa dela, a técnica traiu a humanidade e transformou o tálamo nupcial num mar de sangue." BENJAMIN, W. Rua de mão única / Infância berlinense: 1900. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 64-5.)

No coração da modernidade, a técnica, por reação à dominação burguesa, levou a humanidade a uma tentativa inimaginável de religação com a experiência cósmica. O progresso capitalista, nesse entendimento, não pode produzir outra coisa senão forças gigantescas que, em nome do cosmos, vêm destruir a dominação que sobre ele essa humanidade tenta colocar. Assim como Gaia, o organismo vivo que compõe a superfície da Terra, se regenera eliminando seus elementos agressores, os homens comedores do planeta (como costuma dizer Ailton Krenak) farão companhia aos dinossauros na memória fossilizada desse nosso astro vivo, caso não puxem a tempo o freio da locomotiva do progresso.

Voltemos agora à Blanqui, numa perspectiva um pouco diferente da de Matos e Schlesener, pela reflexão de Seligmann-Silva:

"A ideia do eterno retorno transforma o próprio evento histórico em artigo de massa. Mas essa concepção mostra também em outro sentido - no reverso, por assim dizer - o rastro das circunstâncias econômicas às quais deve sua súbita atualidade. Essa se anunciou no momento em que as condições de vida se tornaram acentuadamente instáveis devido à acelerada sucessão de crises. A ideia do eterno retorno derivava seu esplendor de já não se poder contar, em todas as circunstâncias, com o retorno da estabilidade em prazos mais curtos que os oferecidos pela eternidade." (BENJAMIN, W. Apud SELIGMANN-SILVA, M. Walter Benjamin e a guerra de imagens. São Paulo: Perspectiva, 2023, p. 108.)

Diante do progresso e sua aceleração de crises a estabilidade - e com ela as experiências e epistemologias descoloniais/contracoloniais que se sustentam na concepção de tradição - se vê relegada apenas ao tão longínquo plano do cosmos. É impossível não trazermos à tona novamente, diante desta interpretação, a sabedoria e a força política do Nêgo Bispo, ao puxar de volta para o plano material e cotidiano o mesmo cosmos, como lugar possível de confluências entre o humano e a natureza. O progresso e suas aceleradas crises não seria, para este, outra coisa senão uma cosmofobia, ou a incapacidade do modelo falido de existência europeia de viver num mundo em que a natureza apareça de outro modo que não coisa dominada ou ameaçadora. Para Bispo, a eternidade pelos astros não seria lugar de refúgio, mas de resistência; não seria um lugar em que o humano se apequena, mas justamente onde se encontra, não seria o lugar do tédio, mas da reconciliação criativa; não seria o lugar do limite imposto pela natureza à tecnologia, mas de sua realização confluente com a natureza. Bispo parece transformar a fantasmagoria de Blanqui em mediação espaço-temporal da existência humana na Terra: a revolução realizada. No meu entender, a sabedoria de Bispo revela o potencial que Benjamin encontrou e tentou nos mostrar na cosmologia do revolucionário Blanqui. Qual subjetividade para os angustiados Blanqui e Benjamin e qual para a convicção e resistência de Bispo? Na ambiguidade da expressão "o fim do mundo" - fim como término e fim como finalidade - a diferença entre duas formas de estar nele.

Passando da finalização cosmológica do planeta para a finalidade encantada de ser ele, nele e com ele, podemos derivar a outra perspectiva presente em Blanqui, que ali se configura quase ao encerramento do texto, como lócus de esperança:

"Eis aqui, porém, um grande defeito: não há progresso. Que pena! Não, são reedições vulgares, redundâncias. Assim como os exemplares dos mundos passados e os dos mundos futuros. Só o capítulo das bifurcações permanece aberto a esperança. Não esqueçamos que tudo o que poderíamos ter sido aqui somos em algum outro lugar." (BLANQUI, L.-A., idem, p. 123.)

Ao mesmo tempo em que aponta o progresso como mito da modernidade, Blanqui nos coloca diante da bifurcação da história e da história como bifurcação, isto é, não linear: em outro mundo, é possível tomar outra via e fazer outra história: é-se lá o que não se é aqui. Neste ponto, o conjunto dos demais autores acima citados, parece fazer de suas palavras uma convocação para que a bifurcação se faça presente neste mundo. Precisamos fazer a bifurcação virar dobra espaço-temporal cósmica para que o outro mundo possível de Blanqui se realize neste.

As teses de Benjamin sobre o conceito de História estão atravessadas dessa concepção de que o instante force o salto para outro espaço-tempo, como quem atravessa o portal do multiverso blanquiano, de modo a romper e interromper o mito da história como linearidade do progresso - eis a revolução benjaminiana: cada segundo é a portinha por onde um Messias pode entrar.


CCCXIX


Seligmann-Silva, após a citação da tese mais alegórica de Benjamin, sobre o Anjo da História, formula a seguinte reflexão:

"Dessa imagem deriva a ideia da história como acúmulo de escombros e ruínas que devem ser colecionados em vista da redenção após a catástrofe. É daqui, portanto, que podemos derivar também a imagem do arquivo e do anarquivamento: o trabalho de recordação agindo como esse anarquivamento que arranca determinados momentos de seu falso contexto (a falsa totalidade) para ressignificá-los no ato de recriação." (SELIGMANN-SILVA, M. Walter Benjamin e a guerra de imagens. São Paulo: Perspectiva, 2023, p. 33.)

E mais adiante temos:

"O arquivo secreto é uma necessidade do Estado e de toda estrutura de poder: contra eles se volta o anarquivamento que o campo artístico ainda pode propiciar. […] Os indivíduos modernos, como vimos, são arquivos que se dividem entre o acessível (consciente) e o secreto (inconsciente)." ( idem, p. 36.)

Por séculos, já, temos chamado de processo civilizatório o que é colonização genocida, temos chamado de mérito o que é privilégio racista, temos chamado de diferença sexual o que é hierarquia de gênero, temos chamado de problema de autoestima o que é humilhação cotidiana, temos chamado de sujeito universal o que é identidade do homem branco burguês. Para cada um destes pares de opostos, se tomamos alienadamente os primeiros elementos - aqueles que, conjuntamente, fazem valer a falsa totalidade -, estamos de mãos algemadas com o arquivamento dos segundos. Mas se tomamos os segundos, extraindo-os da grande narrativa que os devora, vemos da coisa o não-idêntico, isto é, o que dela escapa às identidades conceituais que visam aprisioná-la.

O arquivamento se assemelha ao processo de dominação conceitual da coisa pela afirmação excessiva de identidades impostas, por meio do qual se arquiva o não-idêntico em regiões longínquas para as epistemologias hegemônicas e genocidas. O arquivamento é identitarismo totalitátio que acusa de identitárias as epistemologias que tenta destruir.

O anarquivamento, por sua vez, é a negação do não-idêntico, na medida em que busca criar, da coisa, espaços de identidade que configurem liberdades, sobrevivências e resistências contra epistemologias totalitárias. Daí, como aponta Seligmann-Silva, a importância da arte como lugar de ressignificação e ato de recriação das identidades negadas da coisa.

Como fazer da clínica psicanalítica - em especial a clínica do trauma -, um anarquivamento? Se a prática dos vencedores se faz sempre atravessada do arquivamento como recolhimento secreto, do campo político-afetivo da memória, da barbárie por eles praticada, como, no espaço também político-afetivo da clínica psicanalítica, viabilizar o anarquivamento? O olhar para trás na própria história pra tirar do esquecimento fatos que foram silenciados e mal-ditos, distorcidos, relativizados em suas violências, naturalizados em suas normatizações estruturais, relê-los e recontá-los a partir de outras leituras e epistemologias, ressignificá-los a partir de contextos outros que não aqueles em que a neurose e o totalitarismo se fundem e mostram suas raízes comuns, recuperar neles o que ali havia de potencialmente transformador e crítico, ou seja, de um sujeito a atribuir-se a um desejo (o que talvez tenha feito pesar sobre a dimensão de sujeito, inclusive, a força do arquivamento). Para nós, no não-idêntico da coisa localizamos, como real, a morada do sujeito desejante. A neurose talvez seja o efeito do arquivamento do sujeito desejante sob a carga histórica e geracional das camadas de transformações almejadas e impedidas. O que resta do arquivamento do desejo de transformação social é um ego entediado e repetitivo a reproduzir de modo hiper-ajustado é necessário as identidades que lhe são ditadas pelo estágio corrente do capital - o arquivamento é, por assim dizer, a estatização da esfera íntima (Idem, p. 36). Aí temos algo do imediato e facilitado do gozo e de um gozo chato. Para um neurótico, outro mundo que não este, lhe parece impossível e, por vezes, ele se entrega a meios contrabandeados de gozo, que se oferecem como "interditados" pela norma, mas que são, do mesmo modo, dominados e controlados pela lógica capitalista de produção, distribuição e consumo. Mas quando, contingencialmente, tocamos em algo que, como memória negada, se anarquiva (e aqui seria fundamental retomarmos a dimensão freudiana do Unheimlich, como sugere Seligmann-Silva, uma vez que os fenômenos de estranhamento contêm o afeto do que, arquivado, quer voltar à luz), ali vemos fermentar, no estranho familiar, como história potencial, como poética fome de significância, como possível frondosa árvore guardada no grão, o que nos caberia considerar como desejo.

Para além do recalque, o arquivamento pode nos dar um valor conceitual que articule simultaneamente as contra-forças psíquicas e históricas. Do mesmo modo, o anarquivamento vai além do retorno do recalcado como processo psíquico, pois o compreende também como um acontecimento decorrente de um ato político sobre o quiasma singular e coletivo das forças repressivas.

Vale dizer, nesse sentido, que o anarquivamento é um forçamento descolonial da concepção da verdade como a-lethéia, ou seja, como não esquecimento.

Do ponto de vista do que se articula ao corpo, é importante tomarmos o anarquivamento como uma atopia das pulsões, ao contrário do controle e da domesticação pulsional existente seja no hiperajustamento, seja no contrabando neuróticos da pulsão, ambos controlados pelas forças do capital.

"Essas obras que lidam com o deambular das pulsões, sua atopia ao invés de seu controle e submissão ao suposto local correto, propõem heterotopias e novas geografias das pulsões. Todavia, as proposições são abertas e não apresentam soluções fechadas e prontas. Permanecem como pura abertura, indicações de possibilidades." (Idem, p. 40.)

Daí a importância, no meu entender, do ato de recriação e ressignificação presente no anarquivamento, enquanto negação do não-idêntico da coisa sem que isso implique a afirmação alienante da mesma. A negação de uma negação não implica uma afirmação, como podemos conceber numa lógica paracompleta. Não se trata de transduzir aquilo que cessa de não se escrever no que não cessa de se escrever, isto é, de fazer passar algo da contingência ao necessário. Ao anarquivamento talvez não convenha ser a produção de novos sintomas num contexto colonizado, mas a descolonização do corpo e das pulsões em relação às identidades objetificantes impostas pelas narrativas e epistemologias hegemônicas e genocidas.

Quando o que, sob a forma do Unheimlich, se manifesta recalcado pedindo sua volta à luz, o que temos, na forma do anarquivamento, é a verdade como não-esquecimento do que nos coloniza o corpo e também, mediante a liberação da pulsão aí contida, o passamento da angústia a algo do poético, como forma de instante de suspensão da totalidade colonial em prol da manifestação de memórias de outra subjetividade possível, que nos chegam por transmissões as mais diversas de antepassados ou como cicatriz de um desejo de outra coisa que foi violentamente interditado na forma do trauma. No instante de suspensão atópica e descolonial da pulsão, as causas de desejos derrotados são desesquecidas e suas verdades políticas saem temporariamente do arquivamento totalitário. Resta-nos fazer disso o momento no qual, como propõe Benjamin em sua última das teses, a rememoração pode desencantar o futuro, lembrando ainda que cada segundo pode ser a porta estreita pela qual pode penetrar a revolução.

JANEIRO 2024